Quadri Aruna e o preço da coragem: Entre a raquete e a justiça

                                                                                                                        Por António Vieira Pacheco

Aruna Quadri em ação e concentrado na sua profissão.
Créditos: Direitos Reservados. Aruna é um batalhador, tanto no interior da mesa como de fora.

                   Quando o corpo fala mais alto: A retirada na Coreia


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                                                Ouça a entrevista completa de Aruna Quadri aqui.

Por entre as sombras e as luzes do ténis de mesa mundial, há histórias que ecoam para lá das pancadas, para lá dos pontos, para lá das medalhas. São histórias de homens que, empunhando a raquete, empunham também a voz. Quadri Aruna, nigeriano de mão firme e espírito indomável, acabou recentemente de encerrar um capítulo amargo na sua já rica jornada — não com vitória no marcador, mas com dignidade no olhar.

Figura incontornável do ténis de mesa internacional, Aruna é amplamente reconhecido como um dos melhores jogadores do mundo. Com uma carreira marcada por feitos históricos — incluindo ser o primeiro africano a alcançar os quartos de final nos Jogos Olímpicos — o seu nome impõe respeito em qualquer arena.

Mas por trás do atleta de topo, há também uma ligação especial com Portugal. Aruna passou pelo nosso país com brilho e impacto, vestindo as cores do Toledos, na ilha do Pico, e mais tarde, do Sporting, onde deixou a sua marca na Liga dos Campeões europeia. Em ambas as casas, construiu pontes entre continentes e cativou adeptos com o seu estilo explosivo e a sua humildade inalterável.

A ITTF recua, a WTT mantém-se firme

O caso que ocupou antena nos meandros, iniciou-se, no ano passado, quando Aruna se retirou do Campeonato Mundial por Equipas, na Coreia do Sul, devido à doença. Poucos dias depois, abdicou da sua presença no WTT Champions Incheon, justificando a decisão com um conflito de calendário — coincidia com a final do seu clube.

A resposta das entidades responsáveis foi imediata: sanções. Contudo, a ITTF mostrou abertura ao diálogo e, após revisão, revogou a penalização. Já a WTT, mais rígida, manteve firme a sua posição e a multa de cinco dólares.

O gesto de desafiar o sistema

Para Aruna, a luta não era somente pelo valor da multa, mas por um princípio. Decidiu então recorrer ao órgão jurisdicional da ITTF, um organismo que, embora afirme independência, está integrado na mesma estrutura organizacional da federação. A balança parecia inclinada desde o início.

Apesar dos argumentos apresentados, o órgão decidiu em favor da WTT. O nigeriano acabou por pagar a multa, mas não silenciou o gesto. Porque, às vezes, perder num processo é apenas um pormenor quando se ganha em consciência.

Uma decisão anunciada? Quando a balança não é neutra

Em entrevista ao ‘podcast’ Spin City, o jogador falou com serenidade. Não havia rancor nas suas palavras, apenas clareza. “Estou feliz por desafiá-los”, afirmou. “O juiz era da ITTF e, como a WTT está basicamente sob a sua jurisdição, seria sempre difícil conseguir um resultado diferente.”

A sua leitura do sistema não é ingénua, mas sim crua e realista. No entanto, é precisamente essa lucidez que torna o seu gesto ainda mais relevante. Em vez de se resignar, escolheu ir até ao fim. Não para obter vitória fácil, mas para ser ouvido.

Aruna e o futuro da representação dos atletas

O ténis de mesa, desporto de gestos breves e concentração cirúrgica, raramente se associa a polémicas judiciais. Mas como qualquer modalidade global, também ele vive dos equilíbrios frágeis entre atletas e estruturas de poder.

A história de Aruna expõe essa tensão. Mostra como, por vezes, os jogadores são deixados sozinhos diante de instituições que não os escutam. Num sistema onde a burocracia pesa mais que a circunstância humana, cada decisão pessoal pode ser interpretada como afronta.

Aruna quer que o seu caso seja um ponto de viragem. Fala com firmeza sobre a necessidade de maior justiça e representação dos atletas. Quer que a sua luta inspire reformas. Quer que os jogadores tenham assento à mesa onde se tomam decisões.

Perder no papel, vencer na consciência

O seu gesto é raro, porque é arriscado. Desafiar quem organiza os maiores eventos implicam arriscar — ser preterido, ignorado e desacreditado. Mas também implica coragem. E coragem é algo que Aruna tem de sobra.

Talvez soubesse desde o início que não ganharia no papel. Mas entrou na sala de audiências com a mesma determinação com que entra numa mesa de jogo: olhos nos olhos, pronto para lutar.

A coragem de Aruna de desafiar o órgão máximo da modalidade.
Créditos: Direitos Reservados. Nigeriano Quadri Aruna, a estrela africana, desafiou a ITTF.

Hoje, paga a multa, mas mantém-se firme. Aruna voltou às competições com a mesma energia que o levou ao topo do ‘ranking’ mundial. Levará consigo, além da raquete, a memória de um embate que não foi apenas desportivo — foi humano, foi ético, foi necessário.

E talvez, entre ‘sets’ e aplausos, ainda se ouça ecoar a sua voz — serena, firme e essencial.

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