Entre raquetes, redes e egos: o campeonato invisível das famílias
🖋️Por: António Vieira Pacheco
📸 Créditos: Entrar no Mundo das Modalidades
Nos desportos de raquete —
ténis, ténis de mesa ou badminton — existem sempre dois jogos em andamento.
O primeiro é o oficial, jogado em
campo: árbitro, regras, pontos e um vencedor.
O segundo, muito mais antigo e inflamado, acontece fora das linhas: nas
bancadas, nas mesas de jantar, nas redes sociais e nos corredores dos clubes.
É o campeonato invisível das comparações familiares.
Geração contra geração
O jovem corre rápido, dispara ‘top’ ‘spins’ que deixam adversários à beira da
exaustão. Faz as movimentações corretas. Poderia ser motivo de orgulho. Mas,
para alguns familiares, o talento não é celebração — é provocação.
“Na minha época, não havia estas
raquetes com borrachas adaptadas para quaisquer tipo de jogo. Se tivesse tido
esse treinador, também chegava ao topo.”
O court transforma-se num espelho
deformado: cada ponto marcado hoje é medido pela régua de ontem, como se o jogo
fosse o mesmo, quando tudo já mudou.
Há outros que querem que os filhos
sejam campeões à força. Remetem as expectativas em alta. Após perdem encontros
e ficam desmotivados e abandonam a carreira desportiva.
Famílias como claques… e árbitros ao mesmo tempo
A família devia ser como a rede no
ténis de mesa: firme, silenciosa, permitindo que a bola siga o seu caminho.
Mas, muitas vezes, transforma-se num árbitro invisível, dirigindo a partida sem
ninguém ter solicitado. A bola bateu na mesa, ou foi para fora da área de jogo.
A rivalidade entre famílias é ainda
mais intensa. Basta um ponto espetacular para que sussurros se espalhem na
bancada:
— Viste? Ele nunca falha aquele smash.
— Pois…, mas o meu tem mais qualidade no serviço.
E pronto. Duas famílias que trocaram
sorrisos na chegada tornam-se adversárias silenciosas, cruzando olhares afiados
a cada ponto, como se cada acerto ou erro fosse uma flecha lançada em silêncio.
Muitas vezes, os atletas são amigos.
Muitas vezes, ficam zangados por uma guerrilha desnecessária.
O pior ainda são as guerras regionais: defender os atletas da própria terra.
Não é só orgulho; é uma disputa por território simbólico, como se cada ponto no
court ou na mesa fosse também um ponto na honra familiar.
O court como metáfora da vida
O court é a metáfora perfeita das relações familiares no
desporto.
Há linhas — que deviam ser claras.
Existem regras — que deviam ser respeitadas.
Tal como num tiebreak tenso, todos parecem querer ganhar,
mesmo que a vitória não valha nada fora dali.
Se pudesse escolher, aconselharia o papel de ball boy ou shuttle boy: recolher a
bola ou o volante, devolver ao jogo e permanecer invisível.
Mas, nas famílias, essa neutralidade é raramente aceite. Todos querem ser treinadores, preparadores físicos,
fisioterapeutas, comentadores e árbitros simultaneamente.
O peso invisível das expectativas
A raquete na mão parece leve, mas o
peito do atleta está esmagado por uma mochila invisível. Ela está carregada de medalhas
antigas que não conquistou, sussurros de “na minha época…” e
expectativas que nem cabem nas costas.
No ténis: “Jogas bem, mas devias
treinar o serviço como eu treinava.”
No ténis de mesa: “O teu ‘top’ ‘spin’ está bom, mas no meu tempo eu era mais
rápido na execução do gesto técnico.”
Cada frase destas é um ponto contra
no jogo mental. E, somadas ao longo da época, pesam mais do que qualquer
derrota.
O amor de família devia ser como um ás:
direto, limpo e impossível de devolver.
Por vezes, vem, com efeito, lateral — cheio de estatísticas antigas, “se fosse
eu…” e “na minha época de jogador…”.
No ténis de mesa, pais contam os
erros não forçados mais rápido do que o marcador oficial. Aquele jogador
tem mais apoios do que o meu filho.
Há olhares que também avaliam antes de aplaudir, cortando o entusiasmo do jovem
jogador.Quando
todos deviam jogar na mesma equipa
O que mais custa é perceber que quem
devia proteger é quem mais pressiona.
Não por maldade, mas por incapacidade de separar o próprio ego do percurso do
atleta.
Houve promessas que não aguentaram a
pressão e abandonaram o desporto.
Já vi jogadores de ténis perderem a calma por um aceno negativo do pai.
Jovens de ténis de mesa desistirem porque o tio corrigia tudo.
Enquanto se discutem comparações e
‘rankings’ imaginários, esquece-se de que o adversário verdadeiro está do outro lado
da rede — não na bancada ao seu lado.
As minhas quatro regras para o fair play familiar
Se pudesse escrever o regulamento
deste campeonato invisível, teria somente quatro pontos:
1. O único oponente é quem está do
outro lado do court.
2. As vitórias são individuais, mas o
orgulho pode — e deve — ser partilhado.
3. Comparações são faltas emocionais e
deviam valer perda de ponto.
4. O maior troféu é ver o atleta feliz,
seja ele “o meu” ou “o seu”.
No fim, quando a rede é desmontada,
as raquetes guardadas e o silêncio volta ao pavilhão ou ao campo de ténis, os
pontos familiares desaparecem.
Ficam as memórias do público silencioso que aplaudiu com o coração acelerado,
sem levantar a voz em competição — apenas para sentir cada ponto, cada esforço,
cada sorriso do atleta.
Porque o desporto, ao contrário da
vida, tem finais claros.
E, na vida, o verdadeiro match point é conseguir estar presente, aplaudir e
apoiar… sem nunca retirar o protagonismo de quem está em jogo.
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